Danilo Manuel Cerqueira Costa1; Priscila Silveira Salvadori1; Rodrigo da Fonseca Monjardim1; Elisa Almeida Sathler Bretas2; Lucas Rios Torres2; Rogerio Pedreschi Caldana3; David Carlos Shigueoka4; Regina Bitelli Medeiros5; Giuseppe D'Ippolito6
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar a necessidade da fase sem contraste nos exames de tomografia computadorizada de abdome. MATERIAIS E MÉTODOS: Foi realizado estudo retrospectivo, transversal e observacional, no qual foram avaliados 244 exames consecutivos de tomografia computadorizada de abdome realizados sem e com a injeção do meio de contraste. Procurou-se estabelecer, mediante análise das fases com o uso do meio de contraste (primeira análise), e posteriormente com o acréscimo da avaliação da fase sem meio de contraste (segunda análise), o diagnóstico principal e os secundários em função da indicação clínica do exame (estadiamento tumoral, abdome agudo, pesquisa de coleção abdominal e hepatocarcinoma, entre outros). Foram medidas as mudanças nos diagnósticos principais e secundários, decorrentes do acréscimo da fase sem meio de contraste. RESULTADOS: Dos 244 casos avaliados, apenas um (0,4%; p > 0,999; não significante) teve o seu diagnóstico modificado após a leitura da fase sem meio de contraste. Com relação aos diagnósticos secundários, 35 exames (14%) foram modificados após a segunda análise, sendo: nefrolitíase (10%), esteatose (3%), nódulo de adrenal (0,7%) e colelitíase (0,3%). CONCLUSÃO: Para as indicações clínicas de estadiamento tumoral, abdome agudo, pesquisa de coleção abdominal e carcinoma hepatocelular, a supressão da fase sem meio de contraste não apresentou impacto diagnóstico expressivo.
Palavras-chave: Tomografia computadorizada; Radiação ionizante; Abdome; Meio de contraste.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To evaluate the necessity of the non contrast-enhanced phase in abdominal computed tomography scans. MATERIALS AND METHODS: A retrospective, cross-sectional, observational study was developed, evaluating 244 consecutive abdominal computed tomography scans both with and without contrast injection. Initially, the contrast-enhanced images were analyzed (first analysis). Subsequently, the observers had access to the non-contrast-enhanced images for a second analysis. The primary and secondary diagnoses were established as a function of the clinical indications for each study (such as tumor staging, acute abdomen, investigation for abdominal collection and hepatocellular carcinoma, among others). Finally, the changes in the diagnoses resulting from the addition of the non-contrast-enhanced phase were evaluated. RESULTS: Only one (0.4%; p > 0.999; non-statistically significant) out of the 244 reviewed cases had the diagnosis changed after the reading of non-contrast-enhanced images. As the secondary diagnoses are considered, 35 (14%) cases presented changes after the second analysis, as follows: nephrolithiasis (10%), steatosis (3%), adrenal nodule (0.7%) and cholelithiasis (0.3%). CONCLUSION: For the clinical indications of tumor staging, acute abdomen, investigation of abdominal collections and hepatocellular carcinoma, the non-contrast-enhanced phase can be excluded from abdominal computed tomography studies with no significant impact on the diagnosis.
Keywords: Computed tomography; Ionizing radiation; Abdomen; Contrast media.
INTRODUÇÃO Os exames radiológicos representam uma das principais fontes de exposição de indivíduos a radiações ionizantes de origem artificial(1). Destacando-se neste contexto, a tomografia computadorizada (TC) representa uma das mais importantes técnicas radiológicas para aplicações médicas, apresentando um aumento significativo no número de exames nas últimas décadas(2). Como consequência da disseminação desta técnica na prática médica, tem-se observado um aumento expressivo na dose de radiação a que estão expostos os pacientes que necessitam de exames diagnósticos(1). Atualmente, a TC responde por pouco mais de 15% do número de exames de diagnóstico por imagem e por mais de 75% do total da radiação proveniente de exames de imagens à qual a população é exposta(3). Os riscos associados à radiação ionizante são proporcionais à exposição(4). Portanto, todo exame diagnóstico deveria ser realizado com uma indicação clínica precisa e com doses de radiação tão reduzidas quanto razoavelmente exequível, sem comprometer a qualidade diagnóstica(5,6). Numerosos estudos têm sido desenvolvidos no sentido de reduzirem a dose de radiação em exames de TC, adotando as mais diversas estratégias(7,8). Entre estas, a supressão de algumas das fases do estudo parece ser uma maneira prática e segura, desde que se garanta a confiabilidade e a acurácia diagnóstica do exame(9). Atualmente, há uma grande variedade de protocolos específicos utilizados em TC de abdome para as mais diversas suspeitas clínicas(10). A maioria destes utiliza a fase sem o meio de contraste intravenoso e que precede as fases com o meio de contraste intravenoso. Apesar de amplamente e universalmente adotados em função de determinadas indicações clínicas, o uso destes protocolos tem implicações relacionadas à dose de radiação, ao tempo de exame e ao consumo do tubo de raios X, e somente seria justificado se agregasse informações complementares indispensáveis para estabelecer um diagnóstico preciso, interferindo, assim, positivamente na conduta e prognóstico do paciente(9). Os protocolos de exame de TC de abdome podem conter até quatro ou mais fases. Cada uma destas fases tem objetivos específicos e que, isoladamente ou em conjunto, permitem estabelecer diagnósticos que aumentam a sensibilidade e a acurácia do método. Por outro lado, não está claro o peso específico de cada uma destas fases de aquisição do exame tomográfico nas principais indicações clínicas e notadamente do valor da fase sem contraste neste contexto. A avaliação da utilidade desta fase no estudo dos órgãos abdominais abriria a oportunidade de suprimi-la em determinadas situações clínicas, reduzindo, assim, a dose de radiação absorvida pelo paciente e os riscos potenciais inerentes ao método. Desta forma, o objetivo deste estudo é avaliar a necessidade da fase sem contraste nos diversos protocolos de TC de abdome e o seu impacto no diagnóstico. MATERIAIS E MÉTODOS O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), com dispensa do uso de termo de consentimento informado por se tratar de estudo retrospectivo. No período de agosto de 2011 a novembro de 2011 foi realizado estudo retrospectivo, transversal e observacional, no qual foram avaliados 244 exames consecutivos de TC de abdome. Destes, 107 (43,8%) pacientes eram do sexo masculino e 137 (56,2%), do sexo feminino. A média de idade foi 66,2 anos, variando entre 18 e 88 anos. Do total de exames, 35,5% vieram de pacientes do pronto-socorro, 30,2% de pacientes internados e 34,2% de pacientes ambulatoriais. Os critérios de inclusão foram pacientes maiores de 18 anos com solicitação espontânea de TC de abdome com indicação do uso de meio de contraste por via intravenosa. Os critérios de exclusão foram pacientes menores de 18 anos, indicação de protocolo de TC de abdome sem o meio de contraste ou com contraindicação ao meio de contraste iodado. Além disso, foram excluídos do trabalho pacientes cuja indicação para realização do exame era pesquisa de hematúria, haja vista a existência de embasamento teórico bem estabelecido na literatura advogando a necessidade da fase sem meio de contraste nestes casos(11,12). Todos os exames foram realizados em aparelho de TC equipado com múltiplos detectores, modelo Brilliance 64® (Philips Medical Systems; Best, Holanda), seguindo-se protocolos de estudo que constam do manual de rotina de procedimentos do setor de TC do Departamento de Diagnóstico por Imagem da EPM-Unifesp (http://ddi.unifesp.br/medicos-e-profissionais-da-saude/193/exames/). A injeção intravenosa do meio de contraste ocorreu por meio de bomba injetora automática, na velocidade de 3–4 ml/s, no volume de 1,5–2 ml/kg de peso, dependendo da concentração de iodo e com volume máximo de 150 ml. O tempo de disparo para as diversas fases de contrastação (arterial, portal e equilíbrio) foi estabelecido a partir de rastreamento automático do pico do fluxo de contraste na aorta. Os parâmetros técnicos utilizados foram: a) colimação de 64 × 0,625 mm; b) 120 kVp; c) mAs estabelecido em função da modulação automática da dose de radiação; d) pitch de 0,891; e) espessura de reconstrução de 3,0 mm. Após a injeção do meio de contraste, as imagens foram obtidas nas fases de contrastação arterial, portal e equilíbrio (respectivamente, entre 15–30 segundos, 60–80 segundos e 3–5 minutos após o início da administração do meio de contraste), de acordo com a indicação clínica e conforme o protocolo de exames do serviço. O meio de contraste administrado por via oral ou por via retal foi utilizado quando previsto pelo protocolo institucional de exame. A dose de radiação foi controlada mediante modulação automática da dose, disponível no equipamento de TC e expressa pelo dose length product (DLP) em mGy. O DLP representa a dose de radiação de um corte de TC multiplicado pela extensão do estudo e é medido em mGy/cm. A dose de radiação efetiva (estima o risco total de indução de efeitos estocásticos decorrentes da exposição à radiação em um órgão irradiado) pode ser calculada multiplicando-se o DLP por um fator de correção em função da região anatômica estudada. O fator de correção é utilizado para cálculo da dose efetiva (expressa em mSv), e em estudos tomográficos da região abdominal varia de 0,015 a 0,018(13). Para efeito de cálculo, utilizamos neste estudo um fator de correção de 0,015. O resultado obtido a partir deste cálculo não é o valor exato da radiação estimada, mas pode ser utilizado como valor de referência em um determinado serviço de TC, uma vez que existe grande dificuldade prática em se medir a dose exata por paciente, decorrente de uma ampla quantidade de variáveis envolvidas no cálculo, inerentes ao paciente (por exemplo: índice de massa corpórea, circunferência abdominal, órgão irradiado) e aos fatores técnicos utilizados (por exemplo: kV, mAs, pitch)(14). Todos os exames foram interpretados em estação de trabalho Synapse® PACS/3D (FujiFilm; EUA) por um radiologista dentre os cinco que compunham a equipe, todos com experiência mínima de três anos em radiologia do abdome, que emitiram parecer baseado inicialmente apenas nas fases após a injeção do meio de contraste, sem avaliar a fase sem contraste (primeira análise), e em seguida combinando os achados de todas as fases realizadas, agregando-se na análise a fase sem contraste (segunda análise). Os examinadores tiveram, previamente, acesso às informações constantes no pedido médico do paciente e classificaram, na primeira e segunda análises, os diagnósticos tomográficos em principais e secundários, em função da sua prioridade e importância clínica para o paciente. Foi considerado diagnóstico principal o diretamente relacionado com a indicação clínica do exame ou que justificasse o quadro clínico do paciente. Os diagnósticos secundários foram estabelecidos por consenso entre os observadores e com base em dados da literatura(15). Ao final da cada avaliação, cada um dos cinco examinadores estabeleceu se houve mudança nos seus diagnósticos principais e secundários, entre a primeira e a segunda análise, ou seja, se a interpretação feita a partir da análise com a fase sem contraste modificou o diagnóstico, quando comparada à análise realizada sem esta. Análise estatística Calculou-se a frequência de mudança dos diagnósticos principais e secundários, de acordo com a indicação clínica, quando comparadas a primeira com a segunda análise. Foi utilizada a extensão do teste exato de Fisher para avaliar a modificação dos diagnósticos principais, considerando-se resultados com p < 0,05 como significantes. Quanto aos diagnósticos secundários, avaliou-se a proporção de casos alterados em relação ao número total de exames. RESULTADOS Foram avaliados 244 pacientes segundo as indicações clínicas, sendo elas: neoplasia, incluindo estadiamento, reestadiamento e pesquisa de tumor primário em 122 pacientes (50%); abdome agudo em 45 pacientes (18%); pesquisa de coleção intracavitária em 38 pacientes (15%); pesquisa de carcinoma hepatocelular (CHC) em 19 pacientes (7%), entre outras. Dos 45 pacientes com indicação clínica de abdome agudo, 71% foram do subtipo inflamatório, 14% perfurativo, 5% obstrutivo, 5% hemorrágico e 5% vascular. Os protocolos direcionados para pesquisa de nódulo de adrenal, trauma e pesquisa de corpo estranho, classificados como outros, apesar de também serem avaliados em relação ao diagnóstico principal, não receberam tratamento estatístico por apresentarem número de pacientes insuficiente. Neste grupo também não houve mudança no diagnóstico principal. A média de radiação por fase foi 835 mGy/cm (DLP), correspondendo a uma dose efetiva estimada em 12,5 mSv por fase. Dos 122 pacientes cuja indicação clínica foi neoplasia, apenas um (0,8%) teve o seu diagnóstico modificado após a leitura da fase sem o meio de contraste (segunda análise), sem significância estatística (p > 0,999). Os protocolos direcionados para as indicações clínicas de abdome agudo, pesquisa de coleção intracavitária e pesquisa de CHC não apresentaram nenhuma mudança no diagnóstico principal. Dos 244 pacientes, 35 (14%) tiveram seus diagnósticos secundários modificados para as diversas indicações clínicas, entre os quais: a) nefrolitíase (25 pacientes, 10%); b) esteatose (7 pacientes, 3%); c) colelitíase (1 paciente, 0,3%); d) nódulo de adrenal (2 pacientes, 0,7%). DISCUSSÃO Nos últimos anos tem-se verificado uma utilização crescente de exames médicos por TC. Esta disseminação da utilização da TC contribui para um aumento da exposição de pacientes a doses significativas de radiações ionizantes, cujos potenciais efeitos nocivos e deletérios para a saúde não podem ser ignorados ou subestimados. O binômio risco-benefício decorrente de tal exposição deve ser cuidadosamente avaliado à luz dos princípios da proteção radiológica dos pacientes mediante avaliação e otimização dos protocolos e práticas clínicas(2,3,5). Muitos estudos têm sido desenvolvidos no sentido de reduzirem a dose de radiação em exames de TC abdominal, adotando as mais diversas estratégias(9,16–18). Alguns autores têm descrito que a acurácia diagnóstica dos exames de imagem para determinadas doenças não sofre prejuízos ao se suprimir uma ou mais fases do exame. Em 2004, Imbriaco et al.(18), ao avaliarem pacientes com suspeita de neoplasia pancreática, demonstraram que o uso de uma única fase pós-contraste em TC multi-slice é uma técnica eficaz para o diagnóstico e estadiamento deste tumor. Em 2005, Iannaccone et al.(8) descreveram que o uso combinado das fases arterial, portal e equilíbrio apresentam sensibilidade e valor preditivo positivo de 92,8% e 97,3% para detecção de CHC em pacientes com cirrose, concluindo que a fase sem contraste não apresenta valor agregado que justifique a sua utilização para a avaliação destes tumores. Em 2008, Leite et al.(9) avaliaram 100 pacientes com indicação clínica indefinida ou em reestadiamento e estadiamento tumoral, demonstrando que o acréscimo da fase sem contraste não é imprescindível para a avaliação destas indicações. Outros autores, como Kim et al.(17), em 2010, concluíram, num estudo prospectivo cujo padrão ouro era a biópsia do fígado, que a fase sem contraste poderia ser dispensada na avaliação da esteatose hepática, utilizando-se no lugar a fase portal, com elevadas sensibilidade e especificidade. Tendo em vista esse tema atual e pouco consolidado, principalmente na literatura nacional, procuramos contribuir com outro enfoque, desenvolvendo um estudo no qual, em vez de focarmos determinada doença ou situação clínica, contemplamos uma ampla gama de indicações de exame na rotina de um serviço de TC, com a finalidade de avaliar o impacto da fase sem o meio de contraste intravenoso nos principais protocolos utilizados. No que se refere ao diagnóstico principal, a segunda análise agregou valor em apenas 1 dos 224 pacientes dos quatro grupos principais de indicações clínicas (pesquisa de tumor primário, suspeita de abdome agudo, pesquisa de coleção intracavitária e detecção de CHC); nos demais 20 (20/244) pacientes não houve nenhuma mudança no diagnóstico principal, após a segunda análise. O paciente que se beneficiou da segunda análise realizou o exame tomográfico para estadiamento de neoplasia de cólon. O diagnóstico inicial (após a primeira análise) indicava a presença de um nódulo renal indeterminado. O diagnóstico final (após a segunda análise) demonstrou tratar-se de um cisto de conteúdo denso, em razão da sua densidade intermediária na fase sem meio de contraste (52 UH) e ausência de realce nas fases pós-contraste intravenoso(19) (Figura 1). O restante do exame apresentava-se normal, de acordo com a avaliação do examinador e sem evidência de disseminação metastática da neoplasia colônica para outros órgãos. Apesar dessa mudança de diagnóstico ter sido considerada importante, seguem algumas considerações.