Francisco Valtenor Araújo Lima Júnior1; Leonor Garbin Savarese1; Lucas Moretti Monsignore2; Roberto Martinez3; Marcello Henrique Nogueira-Barbosa4
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar o acometimento musculoesquelético da paracoccidioidomicose nas imagens de tomografia computadorizada. MATERIAIS E MÉTODOS: Estudo retrospectivo desenvolvido a partir de revisão de laudos radiológicos e patológicos do banco de dados da instituição. Foram selecionados pacientes com paracoccidioidomicose osteoarticular submetidos a tomografia computadorizada. Todos os casos considerados tiveram confirmação histopatológica da doença. Os achados de imagem foram descritos em consenso por dois radiologistas. Um paciente com incontáveis lesões ósseas foi excluído da contabilização das anormalidades com a finalidade de evitar viés. RESULTADOS: Foram incluídos 7 pacientes no presente estudo. Um total de 18 lesões ósseas foi contabilizado. Em quatro casos (57,14%) a lesão osteoarticular foi a primeira manifestação da doença. As lesões ósseas eram múltiplas em 42,85%. Os esqueletos apendicular e axial foram afetados em 85,71% e 42,85% dos pacientes, respectivamente. O envolvimento ósseo caracterizou-se por lesões osteolíticas bem delimitadas. Identificou-se osteoesclerose marginal em 72,22% das lesões contabilizadas. Reação periosteal lamelar e componente de partes moles estiveram presentes em 5,55% das anormalidades. Um paciente exibiu múltiplas lesões com sequestros ósseos. CONCLUSÃO: A paracoccidioidomicose pode ser incluída no diagnóstico diferencial de lesões osteolíticas, únicas ou múltiplas, em pacientes jovens, mesmo sem diagnóstico prévio de paracoccidioidomicose pulmonar ou visceral.
Palavras-chave: Paracoccidioidomicose; Osteoarticular; Musculoesquelético; Osteomielite; Tomografia computadorizada.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To evaluate musculoskeletal involvement in paracoccidioidomycosis at computed tomography. MATERIALS AND METHODS: Development of a retrospective study based on a review of radiologic and pathologic reports in the institution database. Patients with histopathologically confirmed musculoskeletal paracoccidioidomycosis and submitted to computed tomography were included in the present study. The imaging findings were consensually described by two radiologists. In order to avoid bias in the analysis, one patient with uncountable bone lesions was excluded from the study. RESULTS: A total of seven patients were included in the present study. A total of 18 bone lesions were counted. The study group consisted of 7 patients. A total number of 18 bone lesions were counted. Osteoarticular lesions were the first manifestation of the disease in four patients (57.14%). Bone lesions were multiple in 42.85% of patients. Appendicular and axial skeleton were affected in 85.71% and 42.85% of cases, respectively. Bone involvement was characterized by well-demarcated osteolytic lesions. Marginal osteosclerosis was identified in 72.22% of the lesions, while lamellar periosteal reaction and soft tissue component were present in 5.55% of them. One patient showed multiple small lesions with bone sequestra. CONCLUSION: Paracoccidioidomycosis can be included in the differential diagnosis of either single or multiple osteolytic lesions in young patients even in the absence of a previous diagnosis of pulmonary or visceral paracoccidioidomycosis
Keywords: Paracoccidioidomycosis; Osteoarticular; Musculoskeletal; Osteomyelitis; Computed tomography.
INTRODUÇÃO A paracoccidioidomicose (PCM) é uma micose sistêmica causada pelo fungo dimórfico Paracoccidioides brasiliensis, encontrado no solo de países da América Latina, destacando-se o Brasil, Colômbia, Argentina e Venezuela(1-7). Cerca de 80% dos casos ocorrem no Brasil, principalmente nas zonas rurais das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde a doença tem caráter endêmico(4,6,8). Apesar disso, não há dados epidemiológicos precisos sobre a PCM no território brasileiro, pelo fato de sua notificação não ser compulsória(9). A infecção por P. brasiliensis é adquirida pela inalação de microconídios do fungo(10). Sua forma infectante atinge as vias aéreas inferiores, resultando na formação de um complexo primário pulmonar(2,7,9,11,12). Nesta fase, pode haver disseminação do agente, via linfo-hematogênica, para outros órgãos e sistemas, dependendo de alguns fatores, como quantidade de inócuos, patogenicidade e virulência do fungo, assim como integridade do sistema imune e possíveis fatores genéticos(2). Na maioria das vezes, a infecção primária regride espontaneamente, deixando lesões pulmonar e/ou linfática cicatriciais, nas quais o fungo pode permanecer por muitos anos em estado latente(9,12). Alguns indivíduos infectados evoluem para a forma aguda/subaguda (tipo juvenil), principalmente crianças e adolescentes, não havendo diferença entre os sexos(1,2). Esta forma clínica apresenta evolução mais rápida, marcada pelo envolvimento de órgãos internos e do sistema reticuloendotelial. A forma crônica (tipo adulto), por outro lado, relaciona-se a reativação de focos latentes de P. brasiliensis ou a nova exposição ao fungo, representando a maioria dos casos da doença (aproximadamente 90%). Esta forma predomina em adultos do sexo masculino, entre 30 e 60 anos(1,2,10), exibindo curso insidioso, marcado por acometimento pulmonar e de outros tecidos, como pele e mucosas. Devido à raridade do comprometimento ósseo e articular pela PCM, há poucas publicações sobre o assunto, sendo que a maioria corresponde a relatos de casos(5-7,13-16). Não identificamos na literatura artigos dedicados aos aspectos de imagem do acometimento musculoesquelético da PCM na tomografia computadorizada (TC). O objetivo deste estudo é identificar as características do envolvimento osteoarticular pela doença nas imagens de TC, a partir de análise de uma série de casos de acometimento musculoesquelético pela PCM, com confirmação histopatológica, e revisão da literatura. MATERIAIS E MÉTODOS Estudo retrospectivo aprovado previamente pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos de nossa instituição. Foi realizada a revisão de laudos radiológicos e patológicos a partir do banco de dados da instituição, sendo encontrados 7 pacientes com diagnóstico de lesões osteoarticulares da PCM, confirmadas pelo histopatológico. Os critérios utilizados para a inclusão de casos no estudo foram: a) confirmação do diagnóstico de PCM pela combinação de testes sorológicos (contraimunoeletroforese) e histopatológico de tecido ósseo ou articular, obtido por meio de biópsia percutânea; b) disponibilidade de imagens de TC com evidência de acometimento osteoarticular pelo fungo. Informações clínicas foram obtidas mediante revisão dos prontuários, sendo registrados o sexo, a idade, a classificação clínica da PCM, os sintomas osteoarticulares, assim como a presença de acometimento de outros órgãos ou sistemas pela doença. As imagens de TC foram analisadas, retrospectivamente, por dois médicos radiologistas de nossa instituição, um deles sênior e especialista em radiologia musculoesquelética, com mais de 15 anos de subespecialidade. RESULTADOS Esta série consistiu em sete pacientes (Tabela 1), dos quais 71,42% eram do sexo masculino (n = 5) e 28,57% eram do sexo feminino (n = 2). As idades variaram de 10 a 33 anos, com média de 18,42 anos (desvio-padrão = 7,65). A PCM foi classificada como forma aguda/subaguda em seis indivíduos, enquanto apenas um dos casos foi classificado clinicamente na forma crônica da doença. Houve acometimento isolado do sistema musculoesquelético em 57,14% dos pacientes (n = 4). Em todos os casos incluídos o tecido ósseo estava comprometido pela doença. Alterações articulares, primárias ou secundárias, foram constatadas em 42,85% deles (n = 3). Sintomas osteoarticulares foram relatados pela maioria dos indivíduos (85,71%; n = 6). As anormalidades ósseas detectadas eram únicas em 57,14% dos casos (n = 4) e múltiplas em 42,85% deles (n = 3). O esqueleto apendicular foi afetado em 85,71% dos pacientes (n = 6), enquanto o axial foi afetado em 42,85% deles (n = 3). Houve apenas um caso em que as lesões identificadas se restringiram ao esqueleto axial. Um total de 18 lesões ósseas foi estudado em relação a suas características. O envolvimento ósseo caracterizou-se por lesões osteolíticas, bem definidas, com zona de transição estreita, variando de poucos milímetros a alguns centímetros, sendo que em 42,85% dos pacientes (n = 3) notamos a presença de fina osteoesclerose reacional perilesional, representando 72,22% (13/18) das lesões ósseas contabilizadas. Identificamos reação periosteal lamelar e componente de partes moles em 11,11% (2/18) e 5,55% (1/18) das lesões estudadas, respectivamente. Um único paciente exibiu lesões com sequestros ósseos. O paciente 7 da Tabela 1 apresentava quadro agudo da doença, com disseminação sistêmica da PCM e múltiplas lesões ósseas. O número de lesões ósseas era muito grande, dificultando a contabilização das anormalidades, não sendo, portanto, avaliadas em relação a suas características específicas. DISCUSSÃO O acometimento osteoarticular na PCM é raro(3,13-17), comprometendo entre 0,01% e 0,04% dos pacientes(3,15). De acordo com a literatura(5,6,17-19), o comprometimento osteoarticular é mais comum nas formas disseminadas da PCM (aguda/subaguda ou crônica), nas quais pode chegar a 20% dos casos. Quase todos os casos de nossa série mostraram acometimento ósseo na forma aguda/subaguda da doença, com predomínio em indivíduos jovens do sexo masculino. Enquanto a forma disseminada da PCM representou 42,85% dos casos, o envolvimento osteoarticular constituiu a única manifestação da doença em 57,14% deles. A maioria dos estudos radiológicos da PCM utilizou a radiografia como método básico na avaliação de lesões osteoarticulares(17-19). Pereira et al.(20) submeteram 14 crianças com a infecção a exames de radiografia simples e cintilografia óssea. Três pacientes apresentaram lesões ósseas identificadas apenas pelo exame de medicina nuclear, as quais podem representar acometimento pela doença. Dessa forma, os autores do trabalho levantaram a possibilidade de a prevalência de lesões ósseas na PCM ser maior do que em geral se identifica, sendo que na rotina clínica são identificados apenas os casos sintomáticos. Na maioria das vezes, os fungos são aprisionados em redes vasculares nos tecidos ósseos, à semelhança do que ocorre em outras infecções(7), sendo menos frequente o comprometimento ósseo por contiguidade, a partir de lesões cutaneomucosas(18,19). Sabe-se que, virtualmente, qualquer osso, no esqueleto axial ou apendicular, pode ser afetado pela doença, ressaltando-se na literatura uma maior prevalência de lesões no segmento torácico e na cintura escapular, incluindo esterno, clavículas, escápulas e costelas(5,18,19,21,22). Nos ossos longos, as regiões metafisárias e epifisárias são os sítios mais acometidos(7,17), presumivelmente em razão da maior vascularização local, podendo ocorrer extensão direta do processo para o espaço articular, o que se acredita ocorrer em cerca de um terço dos casos(18). Há poucos relatos de doença restrita à articulação, onde o fungo pode se estabelecer a partir de disseminação linfo-hematogênica(7,18,19). Em nossa casuística houve predomínio de lesões no esqueleto apendicular, encontradas em seis dos sete pacientes. O esqueleto axial esteve envolvido em três indivíduos, dos quais dois apresentavam comprometimento apendicular concomitante. Observamos também acometimento articular associado a lesões ósseas em 42,85% dos pacientes e nenhum caso com envolvimento isolado da articulação. Antecedente de trauma, aberto ou fechado, precedendo as manifestações osteoarticulares, facilita o estabelecimento do fungo durante a fase de fungemia(7,18,23), fenômeno denominado locus minoris resistentiae(23), não devendo ser interpretado como fator inoculador do agente. Admite-se que a maioria das lesões ósseas pela PCM seja assintomática(5,7,18,19), representando achados incidentais em exames radiológicos de rotina. Monsignore et al.(17), numa série de 19 casos de PCM osteoarticular, identificaram sintomas em 12 pacientes, sendo que todos foram classificados com a forma aguda/subaguda da doença, sugerindo possível associação entre esta forma clínica e a presença de sintomas. As lesões articulares pela PCM costumam exibir quadro clínico exuberante, marcado por edema articular, calor local, rubor e perda funcional em graus variados(6,7,18,19). Na presente série, o principal achado do comprometimento osteoarticular pela PCM nas imagens de TC foi lesões osteolíticas, bem delimitadas (Figura 1), variando de poucos milímetros até alguns centímetros, o que está de acordo com dados da literatura(3,5,17-19). Diferentemente de alguns trabalhos publicados(3,5,18), identificamos a presença de fina osteoesclerose reacional nas margens de 72,22% (13/18) das lesões ósseas (Figuras 2 e 3), sendo que o tempo médio entre o aparecimento dos sintomas da doença e o exame de imagem foi 6,33 meses (variando de 3 a 12 meses). Outros autores também identificaram a ocorrência de osteoesclerose marginal em parte das lesões ósseas(14,17,19,23). Presumimos que esse nosso resultado possa ser explicado, pelo menos em parte, pelo uso de imagens seccionais e pela alta resolução das imagens de TC, o que pode ter proporcionado maior sensibilidade na detecção de anormalidades sutis em relação a outros estudos que fizeram a avaliação apenas por meio de radiografias simples. Em dois de nossos casos encontramos imagens sugestivas de fraturas associadas às lesões osteolíticas (Figuras 1 e 2), outro achado que não tem sido descrito com frequência em associação com a PCM osteoarticular.